sábado, 25 de outubro de 2008

SÓ DOIDO! SÓ POETA!

No ar purificado,
quando já o refrigério do orvalho
goteja sobre a terra,
invisível, inaudível também
-pois o consolador orvalho usa
sapato delicado, como todos os apaziguadores –
recordas-te então, recordas-te, coração ardente,
como outrora tinhas sede
de lágrimas celestiais e gotas de orvalho,
queimado e fatigado tinhas sede,
enquanto veredas amarelecidas
olhares perversos do sol poente
te perseguiam através das árvores negras,
olhares ofuscantes de fogo solar, olhares maliciosos.

- Pretendente da verdade – tu? escarneciam eles
um bicho astuto, predador, rastejante,
que tem de mentir,
que tem de mentir deliberadamente, voluntariamente,
ávido de presa,
disfarçado de variegadas cores,
máscara para si próprio,
de si próprio presa
isto – o pretendente da verdade?...
Só Doido! Só Poeta!
Só falando à toa,
sob máscaras de doidos falando à toa,
subindo por mentirosas pontes de palavras,
entre falsos céus
vagueando, rastejando –
doido! poeta!...

Isto – o pretendente da verdade?...

Não quieto, rígido, liso, frio,
tornado estátua,
não como coluna de deus
colocada diante dos templos,
guardião de um deus:
não! hostil a essas estátuas de virtude,
mais íntimo dos desertos que dos templos,
cheio de felina malícia
saltando por qualquer janela
upa! para todo o acaso,
pelo faro procurando qualquer floresta virgem
para que nas florestas virgens,
entre feras de pêlo malhado
corresses pecaminosamente são e belo e colorido
com beiços lúbricos,
ditosamente escarninho, infernal, sanguinário,
corresses roubando, rastejando, mentindo

Ou semelhante à águia que longa,
longamente fixa os abismos,
os seus abismos…
- Oh! como estes se enroscam lá para baixo,
para o fundo, para dentro,
em profundezas cada vez mais fundas! –
Então,
de súbito,
em voo picado,
num rasgo palpitante
cair sobre os cordeiros,
repentina, voraz,
ávida de cordeiros,
hostil a todas as almas de cordeiros,
raivosamente hostil a tudo o que tem olhos
virtuosos, de carneiro, de lã encaracolada,
a toda a estupidez, à leitosa benevolência de cordeiro…

Assim,
de águia, de pantera,
são os anseios do poeta,
são os teus anseios sob mil máscaras,
ó doido! ó poeta!...

Tu que viste o homem
como deus tanto como carneiro -,
despedaçar o deus no homem
tal como o carneiro no homem
e rir despedaçando –
isto, isto é a tua ventura,
ventura de pantera e águia,
ventura de poeta e doido!...

No ar purificado,
quando já a foice da lua
verde por entre vermelhos purpúreos
e ciumenta desliza,
- hostil ao dia,
a cada passo secretamente
ceifando as roseiras balouçantes
até caírem,
afundarem-se pálidas em direcção à noite:
assim eu mesmo caí outrora
da minha loucura da verdade
dos meus anseios de dia,
cansado do dia, doente da luz,
- caí, para o fundo, para a noite, para a sombra,
Abrasado e sedento
De uma verdade
- recordas-te ainda, recordas-te, coração ardente,

da sede que sentias? –
ah, que eu seja banido
de toda a verdade!
Doido! poeta!...

NIETZSCHE, Friedrich. Ditirambos de Diónisos. Versão Manuela Sousa Marques. Lisboa: Guimarães Editores, 2000
Dionysos – Dithyramben. Editio princeps: 1895

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